Prefácio de António Sampaio da Nóvoa

Tudo está nas palavras. Principalmente o silêncio. O que somos e o que gostaríamos de ter sido. O que fizemos e o que sonhámos. Vive-se de palavras e morre-se com elas, ou com a sua ausência. Somos feitos de palavras. As que foram ditas e as que ficaram por dizer. São as palavras que nos prendem. São as palavras que nos libertam. A vida resume-se à procura da palavra que nem sempre encontramos.

Em português, as palavras são Vieira. Ninguém, antes dele, ninguém, depois dele, fez tanto com as palavras, fez tanto pelas palavras. Sem Vieira, não teríamos a língua que temos. Sem Vieira, que seria da língua portuguesa no Brasil? Nesse difícil século xvii da nossa história, Vieira abriu e espalhou a língua portuguesa, fez dela cultura, marcou o seu lugar no mundo.

O P.e António Vieira é uma das figuras grandes da cultura portuguesa. “É de facto o maior prosador – direi mais, é o maior artista – da língua portuguesa”, escreve Fernando Pessoa. Português e brasileiro, escreve enquanto fala, pensa quando se dirige aos outros, num exercício de crítica social e política que ainda hoje nos inspira.

Ao promover a edição da Obra completa do P.e António Vieira, a Universidade de Lisboa cumpre a sua responsabilidade. O que define uma universidade é a cultura, cultura como património e como criação. Num período de grandes dificuldades, mais do que nunca, temos de saber escolher as nossas prioridades. A edição rigorosa, e crítica, das fontes principais da cultura portuguesa é uma das missões mais nobres que a sociedade nos atribuiu. Só assim se consegue compreender a história e, através da sua integração na formação das novas gerações, projetá-la no futuro.

A preparação e edição de obras completas é uma das grandes lacunas que existem em Portugal. São muitos os projetos que ficam a meio, inacabados, sem continuidade. Particularmente grave é a ausência da Obra completa do P.e António Vieira, ainda que muitos dos seus textos estejam disponíveis, em edições de maior ou menor importância, tanto em Portugal como no Brasil.

O atual projeto editorial, de enorme envergadura, nasceu no âmbito do Centenário da Universidade de Lisboa, em 2011. Graças à tenacidade de José Eduardo Franco e de Pedro Calafate, foi possível constituir uma equipa com mais de três dezenas de especialistas, maioritariamente de universidades portuguesas e brasileiras, mas também de outros países, com o compromisso de publicar, até 2014, os trinta volumes da Obra completa. Raramente, na história da cultura em Portugal, se terá reunido um grupo tão alargado de pessoas em torno da edição da obra de um autor.

É um empreendimento editorial invulgar no nosso país, que só foi possível levar a cabo graças à participação do Círculo de Leitores e ao apoio de muitas entidades públicas e privadas. Para além da compilação e sistematização dos textos dispersos de Vieira, a Obra completa inclui ainda documentos inéditos (tais como cartas, teatro e poesia), bem como a edição global de escritos em língua latina, agora integralmente traduzidos. Paralelamente será elaborado um Dicionário multimédia e organizada uma “obra seleta” a publicar em oito línguas.

Ao conjunto deste projeto chamaram os coordenadores "Vieira global", conseguindo assim realizar o que muitos estudiosos da cultura portuguesa e brasileira procuraram fazer, sem sucesso, pelo menos desde o século xix.

A Universidade de Lisboa orgulha-se desta iniciativa e agradece a todos os que transformaram em obra concreta uma ideia que parecia irrealizável: “Para falar ao vento bastam palavras, para falar ao coração são necessárias obras”, como bem disse o P.e António Vieira.

Para uma universidade não há maior distinção do que a capacidade de pensar e de agir para além da efemeridade dos dias que correm, e que passam. A nossa ação mede-se no tempo longo da história. É nesse tempo que encontramos a obra de Vieira e que abrimos um pouco da história do futuro.

António Sampaio da Nóvoa
Reitor da Universidade de Lisboa
Lisboa, 12 de novembro de 2012