Discurso do Bispo Carlos Azevedo em Roma sobre a Obra de Vieira


AntónioVieira: obra completa.
Apresentação em Santo António dos portugueses, 4-3-2015.
Bispo Carlos Azevedo, Delegado Conselho Pontifício da Cultura

«O empreendimento da obra completa do "maior artista da língua portuguesa", no dizer de Pessoa, permite, finalmente, o retrato pleno de uma personalidade de faces múltiplas, de olhares ousados, expressivos, concretos e visionários. As preciosas relíquias - os escritos - de um percurso biográfico espantoso e longo (1608-1697), atribulado e laborioso, destemido e persistente são o espelho de um peregrino, sempre em demanda de um futuro feito missão. Agora Vieira tem acesso facilitado para penetrarmos na aventura de um dos maiores nomes da cultura luso-brasileira.

Desculpem-me começar por uma confissão. Mas esta apresentação fez-me evocar o meu inicial entusiasmo por Vieira, quando jovem de 20 anos, no segundo ano de teologia, aproveitava a chave da biblioteca que o Reitor me concedeu, ao ver as horas que eu lá passava, a vasculhar o imenso acervo bibliográfico do Seminário Maior do Porto. Então, encontrei um livro manuscrito, com textos de António Vieira. Foi a primeira investigação a que me dediquei, sem nunca ter publicado nada sobre essa descoberta. Tratava-se, segundo então apurei, de uma cópia manuscrita de textos publicados e outros que, não sendo seus, lhe eram atribuídos, como foi muito habitual.

Curiosamente, o ano passado deparei, no Arquivo Secreto Vaticano, com textos manuscritos do nosso Mestre, numa caixa de documentos do século XVIII, sem paginação (ASV, Segreteria di Stato. Portogallo). Trata-se: do parecer dado a D. João IV para se admitirem no comércio do Reino os judeus (Vol. IV/2, p.33-48); da cópia da parte final da Carta a André Fernandes, bispo do Japão, a 29 de Abril de 1659, conhecida como Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo (Vol. I /2, p. ?) e do memorial a El Rei D. Pedro II sobre os seus serviços (Vol. I/5, p. 52-58).

Não foram, porém estes pessoais laços de estudo com António Vieira, a conduzir-me a estar diante de vós. Aceitei, além do mais, porque estes 30 volumes fazem realmente parte do património cultural. Muito obrigado pelo convite a apresentar este monumento. Pena que o guia não tenha pena para tal tarefa. Aceitem o gosto e a boa vontade de corresponder ao pedido de amigos.

 

A notável empresa levada a cabo pela Universidade de Lisboa, sob coordenação geral dos Professores José Eduardo Franco e Pedro Calafate, revela como a união de vontades pode oferece à cultura instrumentos imprescindíveis. De facto, aqui se uniram uma editora, com larga prática e provada competência na publicação de grandes obras, como o Círculo de leitores, o mecenato de várias entidades, principalmente da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, e o trabalho de uma equipa de estudiosos portugueses e brasileiros. Abarca as áreas de Literatura, filologia clássica, linguística, história, paleografia, filosofia, teologia e direito. Não fosse o próprio Vieira amante de livros, de história e de geografia, conhecedor do direito, cultor da filosofia e da teologia, praticante exímio da retórica!

Vieira merecia este esforço, ou melhor era um dever para com quem zelou da língua portuguesa com o cuidado maternal de a recriar. Bem hajam todos os trabalhadores deste projeto por esta homenagem maior a quem concedeu ao idioma português formas dignas de uma transfiguração, qual escultor criativo.

Muitos têm admirado António Vieira por, nos ambientes gongóricos da corte, ser linear amante da verdade e, nos corredores manhosos da diplomacia, ser servidor leal da nação. Realmente, percorreu sertões e atravessou mares na ousadia da missão, fiel ao povo índio e crítico das atitudes coloniais. Tanto experimentou a amargura dos cárceres da Inquisição e os limites à liberdade da palavra, como saboreou a doçura do sucesso dos ouvintes da sua pregação. Foi gigante na capacidade para captar a vida da Palavra bíblica, lançá-la certeiramente na realidade histórica, com sedutora beleza literária e interpretá-la com louca utopia. Consciente da força da Palavra, fez da língua espada para questionar poderosos, recorreu à retórica para zurzir consciências sem liberdade e com eloquência vibrante defendeu indefesos e lutou por ideais aplicados ao concreto histórico no qual vivia.

Situou-se nos diversos lugares a que a vida o chamou e foi lugar mal situado na imparável irrequietude do seu espírito. Permitam-me recordar, muito sucintamente, o seu agitado percurso.

A época da Restauração abriu em Lisboa espaço às qualidades do já admirado pregador da Baía e de Olinda, para onde o lisboeta tinha ido aos seis anos com a família, em 1614. O brilho eloquente dos seus sermões conquista auditório na capital do império e conduz a conselheiro da corte quem, no púlpito, aplicava ao quotidiano politico e Palavra da Escritura. Nos anos 40 é chamado a missões diplomáticas nos Países Baixos e em França, experiência fundamental para expandir o seu olhar e abrir horizontes de tolerância. Deu provas da lição acolhida. De facto, reformar os processos da Inquisição e conceder confiança aos cristãos-novos que investiam no comércio, seja para o Brasil seja para o Oriente, bem como alimentar uma utopia para Portugal no mundo, são aspetos de alcance político e cultural e terreno propício ao génio militante do Padre António Vieira.

Aparecem naturalmente contratempos. Desagrada aos colonos brasileiros a legislação que obtém de D. João IV a favor da liberdade dos índios e dos aldeamentos das missões jesuítas. Critica severamente os excessos de ganância, luxúria e crueldade dos senhores e dos seus aliados é vigiado pelo Tribunal da Inquisição pela amizade com cristãos-novos e por pressionar a reforma inquisitorial. Perseguido e condenado em 1667 pela Inquisição portuguesa consegue indulto do Regente D. Pedro para ir a Roma. Vive aqui, na cidade eterna, entre novembro de 1669 e maio de 1675. Prega, obtém sucesso na Igreja de Santo António dos Portugueses, é admirado pela rainha Cristina da Suécia, estimado pelo Superior Geral dos jesuítas e pelo Papa. Apenas consegue anulação da sentença da Inquisição portuguesa e imunidade contra a sua jurisdição, regressa a Portugal, onde não encontra acolhimento desejado.

Parte, então, para a sua Baia em 1681, após obter nova lei com total proibição da escravatura indígena. Não se trata do descanso do herói pois, desgastado por tantas aventuras, desempenha ainda com vigor o cargo de visitador das missões do Brasil e Maranhão. Não abandonava o "vício" da escrita prosseguindo com cartas, sermões, pareceres e cuidando dos textos proféticos, sobretudo A Chave dos Profetas, a menina dos seus olhos, que fechará a 18 de Julho de 1697, sem terminar o escrito predileto.

Diante de um autor que examina um avultado número de questões que ora nos surpreendem, por tão contemporâneas, ora parecem estranhas, se não extravagantes, como arrumar a sua produção literária?

 

Vamos conhecer os critérios da edição da obra completa.

Os primeiros cinco volumes reúnem textos do género epistolográfico bem como memoriais e pareceres em forma de carta. Têm coordenação geral de Carlos Maduro. Nas cartas Vieira transparece um "homem dialogante, afável, curioso e recetivo à novidade" (I/1, p. 90). Mais de 70 cartas inéditas se juntam nesta edição. Muitas outras, das 719 da edição de Lúcio de Azevedo, foram corrigidas e completadas. Curioso é o terceiro volume ser dedicado à avultada correspondência enviada nos anos em que o jesuíta residiu em Roma.

Seguem-se os tradicionais 15 volumes de sermões, a que Vieira se viu obrigado a dar atenção, na década de 1670 para serem publicados, sendo 12 preparados pelo Autor e 11 publicados ainda em vida. A presente edição da parenética, coordenada por João Francisco Marques, acrescenta neste conjunto não só novos sermões, entretanto encontrados, mas também discursos e reflexões de temática teológica e moral.

O censor do primeiro volume dos sermões, o insuspeito franciscano e pregador régio, Fr. João da Madre de Deus, assim define o estilo de Vieira: "Começa com energia viva, que atrai; prossegue com claridade singular, que deleita; prova com viveza grave, que admira; recolhe com variedade eloquente, que ensina; adorna com excelência sentenciosa, que suspende, e, o que é mais dificultoso, Postremo docet, delectat, afficit. Diverte como se não advertisse; ensina como se não recreasse; deleita como se não repreendesse, aproveita como se não deleitasse."


Fr. João, no segundo volume da editio princeps, acrescenta, o que certamente continua a motivar a leitura destes textos, tão elegantes no dizer: "Ordinariamente os sermões lidos são menos agradáveis do que ouvidos, porque lhes falta no papel aquela alma que o espírito dá às palavras, e com que as vozes acompanham as ações. Porém neste papel estão tão animadas as palavras, e tão viva a eloquência, que lhes dá tanta vida a pena, como lhes tinha dado a boca. A linguagem tersa, sem afetação, os conceitos sentenciosos, sem artifício, a eloquência fecunda, sem demasia, tudo tão ajustado às leis de um grande orador, que, em reduzi-lo a termos praticáveis, é este orador tão singular, que Deus o fez primeiro. E não sei quando fará o segundo! Unir o eloquente com o sentencioso é felicidade de que só pode presumir sem vaidade o Pe. Antônio Vieira". Sem comentários.


O estarmos aqui conduz-me a recordar o que nesta igreja pregou: em 1670, o Sermão do Mandato e o sermão de Santo António; em 1672 o sermão das cinzas; em 1673 outro sermão na quarta-feira que abre a Quaresma e ainda o sermão da Rainha santa, em 1674. No sermão de santo António criou aquela célebre afirmação, tantas vezes citada: Nascer pequeno e morrer grande, é chegar a ser homem. Por isso nos deu Deus tão pouca terra para o nascimento, e tantas para a sepultura. Para nascer, pouca terra; para morrer toda a terra: para nascer, Portugal: para morrer o mundo.


No Sermão pregado em 1672, Vieira como que salta para fora de si e do sentido individual da vida ou da morte, e debruça-se sobre a condição histórica da humanidade. Não é a vida que comanda a história, é a morte: porque a morte iguala todos no mesmo pó. Desfaz impérios e arrasa cidades, livra os miseráveis do sofrimento e aterroriza os poderosos. Nivela todos pela bitola de uma só e mesma justiça, que se aplica a todos, sem olhar a quem.


Vieira visa as injustiças, as desigualdades, a ostentação, o prazer e a magnificência dos palácios, como que insinuando que a humanidade seria mais feliz, se as pessoas se convencessem de que já são o pó que hão-de ser. Mas como? «Como o pode alcançar o entendimento, se os olhos estão vendo o contrário?» – pergunta o Padre Vieira. Neste ponto, refere os túmulos dos Papas falecidos nos últimos vinte e oito anos. A maior parte dos presentes tê-los-ia conhecido. A caricatura que o Padre Vieira faz dos longos epitáfios papais em latim redu-los a todos a um denominador comum: «Aquele pó foi». Em vida, quando eram «pó levantado», foram «Sumos Pontífices», «Príncipes da Igreja», «Suas Santidades», agora são apenas: pó caído. (Vieira, Sermões I, edição crítica, p. 72).

Ouçamos o pregador, aqui, em 1672: «Que é Roma levantada? A cabeça do mundo. Que é Roma caída? A caveira do mundo. Que são esses pedaços de Termas, e Coliseus, senão os ossos rotos, e troncados desta grande caveira? E que são essas Colunas, essas Agulhas desenterradas, senão os dentes, mais duros, desencaixados dela! Oh que sisuda seria a cabeça do mundo se se visse bem na sua caveira!» (Vieira, Sermões I, edição crítica, p. 78).

E porquê este olhar de censura para Roma? Porque Roma, a temporal, não olha para a caveira que foi nem para a caveira que há-de ser. Em vez disso perde-se na vaidade.

Como lembra Arnaldo Espírito Santo, que seguimos nesta análise, a correspondência enviada de Roma durante o ano de 1672, data em que foi proferido este sermão, em especial as cartas endereçadas a Duarte Ribeiro de Macedo e ao Marquês de Gouveia, é fértil em pensamentos pessimistas sobre o futuro da cabeça da Igreja, da Itália, da Europa e do mundo. Vieira perscruta «os avisos do Céu», manifestados no «grande prodígio que foi o corpo de S. Nicolau começar a sangrar» (Cartas, vol.2, pp. 358, 427, 429, 431, 436, 445, 452, 454). «Um raio caído em Palácio no quarto de Sua santidade»


(Cartas, vol.2, p. 454) constituiu, juntamente com uma série de terramotos em Itália e com o aparecimento de um cometa em Portugal, uma advertência à cristandade. O Turco às portas da Hungria e da Croácia, o seu avanço sobre a Polónia, a guerra desencadeada entre a República de Génova e o Duque de Sabóia, a fome que grassava na Sicília e no sul de Itália, são os elementos de composição de um quadro terrificante. Roma não está livre de uma nova destruição que Vieira pensa será para breve.

Se fosse hoje, com as ameaças do Isis, o que não diria…


Mas deixemos o contexto dos sermões para regressar ao texto.
O terceiro tomo, coordenado por Pedro Calafate, em seis volumes, é constituído pela obra profética, parte mais polémica da sua escrita. A obra preferida de Vieira, A Chave dos profetas é traduzida a partir dos manuscritos de duas bibliotecas romanas: Biblioteca Casanatense (706) e Biblioteca da Universidade Gregoriana (359). Incluem-se nos volumes deste tomo: a História do Futuro, a Defesa perante o Santo Oficio, o Processo da Inquisição e a Apologia, acrescentando novos elementos até agora inéditos e devidos ao estudo de Adma Muhana.

Uma quarta parte, coordenada por José Eduardo Franco, intitulada Varia, agrega, em quatro volumes, escritos dispersos: relatórios, descrição de viagens, projetos, propostas, memoriais sobre matérias políticas, sociais e económicas. Finalmente, a obra completa do clássico português termina com volume dedicado a textos poéticos, epigráficos e dramatúrgicos de Vieira ou a ele atribuídos. Quando em latim ou em espanhol, são traduzidos. Este volume inclui ainda os índices gerais (441-492) e uma série de instrumentos de consulta: elucidário vocabular, explicando termos e expressões presentes nos textos vieirianos (p. 230-361), tábua de autores mais representativos com sumária identificação (p. 363-380), tábua de referências mitológicas greco-romanas (p.381-384), cronologia da vida, obra e receção (p. 385-405) e inclui finalmente a "Síncrise diacrónica-sincrónica de eventos e contextos do século de Vieira", proposta por João Francisco Marques (p. 406-437).

Como se nota, o recurso a bibliotecas e arquivos públicos e privados conduziu à identificação de novas fontes manuscritas. Não se trata de uma edição crítica "anotada e cotejada". Esperemos que a equipa de Arnaldo Espírito Santo continue o seu paciente trabalho de uma edição crítica dos sermões, iniciada em 2008.

Os editores da Obra Completa mostram declarada preocupação por tornar os textos acessíveis ao grande público. Daí a opção por uma atualização linguística na fixação do texto e pela redução das notas ao mínimo, apresentando boas introduções a cada volume.

A publicação da obra completa de Vieira insere-se num projeto "Vieira Global" que confiamos oferecerá novos elementos para conduzir ao conhecimento mais largo e profundo do "Grande Pai", não só dos cristãos que missionou com paixão, mas também da língua, que esculpiu com esmero criador.

A espantosa existência de Vieira dinamizou a sociedade do seu tempo com capacidade de intervenção e criteriosa reflexão. O raro acontecimento editorial, que aqui nos convocou, constituirá, estou certo, base essencial para se encontrarem novas fontes e principalmente para se prosseguir no largo mar da investigação. Pois vida tão plurifacetada tal permite e a tal obriga.

Portugal e a Europa precisam do estímulo de gente com utopia no olhar e frontalidade realista para agarrar nas mãos a construção do mundo novo. Esta edição honra quem a produziu e responsabiliza quem a tem nas mãos.

Obrigado»

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